20080804

COLÓQUIO INTERNACIONAL BRASIL CANADÁ

Participei de excepcional encontro interdisciplinar internacional dos Núcleos de Estudos Canadenses do RS e Associação Brasileira de Estudos Canadenses em 25 e 26 de março de 2008, em Porto Alegre, que gerou múltiplos efeitos e ainda está sendo motivo de pesquisas conexas diversas. Foi lançado também o número 8 da revista Interfaces, que está no site http://www.revistabecan.com.br/
.O encontro foi transformado na obra Brasil/Canadá: Imaginários Coletivos e Mobilidades (Trans) Culturais, Zilá Bernd (org). Porto Alegre: Nova Prova, 2008.Transcrevo abaixo meu debate na conferência do professor Jean François Coté, "Le concept d´Americanité: hibridité culturelle et cosmopolitisme"

Imperialismo e cosmopolitismo: o Canadá e a busca de um novo paradigma

Roque Callage Neto

Gostaria inicialmente de agradecer à professora Zilá Bernd e à professora Núbia Hanciau,pelo convite a participar deste colóquio realizado pela Abecan e pelos Núcleos de Estudos Canadenses do Rio Grande do Sul. Aplaudi ao professor Jean-François Côté pelas palestras com que nos brindou durante o evento em torno dos dilemas americanos, do imperialismo e dos cosmopolitismos.

Farei alguns comentários e observações à apresentação do professor Côté, para eventualmente, ao final, oferecer algumas complementações à sua exposição.

O professor introduz a questão através do conceito amplo, abrangente e unificador de Americanidade, proposto por Francis Monroe Kercheville, em 1939, e recuperado por Immanuel Wallerstein e Aníbal Quijano, em 1992, para exprimir vinculação a uma idéia continental e processo de nascença de uma região inteira. Isto aparece dentro do sistema-mundo moderno ao longo do século XVI e, para Wallerstein, a América é vista como periférica ao nascimento da Nova Europa, perdurando até o século XIX, intrinsecamente dentro do fenômeno da modernidade.

Como afirma o professor, as características fundamentais da Americanidade apareceriam no colonialismo, na etnicidade, no racismo e na cultura da novidade por si mesma. O século XIX traz posições que tentam liberar as Américas da tutela européia para criar identidades nacionais na representação expandida da nação como conseqüência do sistema-mundo que faz sua mudança, influenciando também transformações pela hegemonia estadunidense.

Neste ponto, o professor J.-F. Côté considera limitado este modo de ver a emergência identitária americana, pois observa o surgimento de racionalidades utópicas que advêm de outras fontes, sejam indígenas, sejam manifestações a partir da América mesma, cuja referência não é a Europa. Mostra-nos também que a invenção de um novo continente significou uma história mais universal do que a da modernidade européia. Para compreender as Américas, podemos inclusive ultrapassar conhecimentos europeus da segunda metade do século XIX da antropologia, paleontologia, etnologia, entre outros. A originalidade americana e suas formas culturais são apreendidas pela literatura, comunicação, novas formas de conflitos e contradições, nas quais contextos de modernidade aparecem e reaparecem em expressões como culturas populares, ou culturas eruditas que coabitam no espaço americano, como afirma Nestor Garcia Canclíni.

Há, nas eruditas observações do professor J.-F. Côté, a percepção de que modernidades diferenciadas convivem nas Américas e o conceito de modernidade mais acabada dos Estados Unidos e Canadá só é formalizado assim pela abstração da presença ameríndia.

Observando suas explanações que vão dos europeus Kant, Herder e a sociedade étnica comparada, chegando a Hegel e sua filosofia da História, do iluminismo até as Ciências do Homem, aportamos à sua conclusão: a modernidade das Américas não é mero prolongamento da sociedade européia, pois a experiência pré-colombiana aponta constantes hibridações.

A virada do século XIX ao XX assistiria ao cosmopolitismo estadunidense se expressar na famosa fórmula de nação das nações até Woodrow Wilson, que a desdobraria como versão de uma nação de todas as nações. A Americanidade se confunde com o americanismo, expressão de imperialismo no interior e no exterior das fronteiras nacionais estadunidenses, tendendo a associar imperialismo e cosmopolitismo, e a defender o modelo imperialista estadunidense para todo o mundo.

Depois da Segunda Guerra Mundial, surgem representações e reivindicações identitárias culturais e sub-nacionais, e o multiculturalismo intervém como forma de aumentar o cosmopolitismo. Pela complexidade do que representa, a identidade das Américas ainda não foi atingida, mas o conceito de Americanidade está ligado de forma indissolúvel à originalidade da experiência cultural que nós representamos.

O campo de observação e a amplitude da proposta

Os comentários a fazer aos textos apresentados pelo professor J.-F. Côté seriam inicialmente os de ressaltar a afinidade e empatia do campo em que nos encontramos e nos representamos para situar a análise sobre as Américas. Nosso convidado traduz os níveis de representação da identidade americana muito claramente e a percepção de Americanidade como nível mais abrangente de representação de todos os americanos. Ao mesmo tempo, observa as limitações de uma teoria como a do sistema-mundo, que faz derivar a representação de Americanidade de processos econômicos estritos do sistema europeu e suas interconexões mundiais, deixando de atribuir valor às criações e representações da própria gênese americana.

Ele faz um percurso que passa pela construção das ciências do homem e da sociologia. Como cientistas sociais, ambos temos a perfeita noção dos paradigmas construídos no século XIX, onde a Sociologia, a Antropologia e outras ciências vieram a ser criadas em substituição à Filosofia da História, a partir dos Estados Nações, da resposta que a industrialização foi dando e os recursos educativos e investigativos que estes Estados precisavam criar. Estamos, eu diria, no mesmo campo de observação.

Apresento, a título de colaboração, alguns comentários complementares a essas observações.

O primeiro diz respeito à própria representação de Americanidade e de seu surgimento no contexto europeu. Cito Richard Morse, e seu famoso livro o Espelho do Próspero.Cultura e idéias nas Américas (1985), para lembrar que a Americanidade e suas divisões contextuais não começam com Colombo nem no momento tido como fundador no século XVI, mas muito antes, quando das escolhas européias no século XIII, das opções intelectuais e construtivas de uma ordem jurídico-filosófica. Descobertas, representações políticas, posições econômicas são advindas desta construção. A Europa do Sul se torna cautelosa diante da experimentação e fortalece uma atitude corporativa e contemplativa, fundada na razão escolástica, com autorizações entre seus conselhos de Governo, de mercês e obediências absolutas aos Soberanos, enquanto a especulação da ciência, experimentação de hipóteses e o mercantilismo investidor se dirigem para o Norte, contemporâneo aos empreendimentos inventivos. Até o começo do século XVI, a península ibérica ainda se equilibra nesta disputa entre a Igreja intolerante e o protestantismo nascente, e o ciclo da globalização portuguesa, com sua ordem patrimonialista do Reino com acordos entre cristãos, judeus e mouros, suas caravelas, cartografia e grandes empreendimentos e logo o Reino Espanhol, são a demonstração disto. Este aspecto e a formação de entre ciclos foram muito bem mostrados por Tesaleno Devezas em sua obra Portugal O Pioneiro da Globalização(2007).A América Ibérica surge neste contexto, seja português, seja espanhol..

Logo a seguir, a contra-reforma espalha a divisão entre uma Europa do Sul e Sudoeste intransigentes, e outra Europa, do Norte, que fortalece os investimentos, a experimentação, a comunidade de empreendedores e as novas colônias. As Américas se dividem como conseqüência dessa divisão. A perspectiva renascentista, que alimentara a divisão, se fortalece de um lado e se enfraquece de outro. São judeus, huguenotes, protestantes, devedores, perseguidos criminais, perseguidos civis e políticos que vêm fazer a América para construir um novo mundo, uma outra realidade.

Então, o primeiro aspecto é o da percepção americana, que não se constrói progressivamente, mas se dá no mesmo momento da chegada à América, se dá com a vinda para a América, pois é a reinvenção de um mundo, outro mundo, é a anti-Europa, em esboço de sociedade civil não absolutista que se transformaria depois em possibilidade de pós-Europa. O americano é necessariamente um não-europeu, e um não-europeu diferente dos habitantes dos outros continentes, porque um europeu negado, reformado, um europeu modificado, reinventado.

O segundo aspecto diz respeito exatamente à hibridez das culturas americanas porque as Américas têm regiões diferentes que retratam colonizações diversas. Elas têm também graus diferentes de hibridez, sendo que a questão da hibridação teria que ser vista sob este aspecto.

Para simplificar, e somente para simplificar radicalmente a visão como método e construir graus de percepção, diria que podemos dividir as Américas em regiões que tiveram escravidão e regiões que não a tiveram. Vemos o exemplo do Canadá e da Argentina, que têm experiências semelhantes e que não passaram pelo sistema escravocrata, embora a Argentina a apresente em caráter residual.

O Brasil e os Estados Unidos constituem países continentais com histórias de escravidão e identidades de fronteira a partir dela. Regiões de escravidão residual no Brasil são similares a certas regiões nos Estados Unidos, e regiões de escravidão plena brasileira são similares a regiões estadunidenses.

Os Andes constituem outra realidade muito diferente, de uma América pré-colombiana; o Caribe constitui uma fronteira móvel, onde a escravidão foi inventada para regiões de plantação vinculadas à Europa.

Enfim, a América foi se conformando segundo os objetivos de colonizadores, as intenções características das colonizações e as formações sociais e econômicas dos tipos emergentes.

E com certeza as regiões não são apenas prolongamento da experiência européia, mas uma combinação entre o interesse do colonizador e a formação gradativa dos interesses próprios gerados nas colônias, especialmente a partir do século XIX, quando os Estados Nações vão se formando nas regiões colonizadas, como muito bem acentuou o professor Côté.

Há regiões em que o preconceito contra o lucro pela presença da Igreja católica ultramontana como agente civilizador estava formado por conseqüência da colonização, como no Canadá francês, ou no Brasil, e América Ibérica. Este fato determinou uma forma de Estado centralizada, uma hierarquia mais aristocrática de costumes. Em contrapartida, registra-se a ocorrência de outras regiões. onde o Estado foi descentralizado e visou comunidades empreendedoras e lucrativas negociais, como nos Estados Unidos e no Canadá inglês.

O terceiro aspecto é o da suposta singularidade dos Estados Unidos. Os Estados Unidos constituíram um fenômeno único de independência precoce do Reino inglês e de formação de industrialização tolerada pelos ingleses, tendo pago suas dívidas ao colonizador. Mas aqui há generalizações que muitas vezes são feitas sobre o papel dos Estados Unidos que não se sustentam e que convergem perfeitamente para a análise feita por J.F. Côté sobre a visão errônea estadunidense de si mesmo como nação das nações. Hannah Arendt por exemplo cometeu um erro ao dizer que os Estados Unidos tinham feito a revolução mais bem acabada da história, uma revolução bem resolvida.Em seu livro Da Revolução (1988), ela diz que não havia uma aristocracia nas colônias, que os colonos não passavam fome, que todos tinham seu pedaço de terra, que a revolução elevou plenamente os colonos à cidadania. Mas resta a pergunta: “e a questão da escravidão?“. Hannah Arendt se omite na resposta a esta questão.

Uma das intenções definidas de Thomas Jefferson era o retorno dos africanos à África como forma de resolver a contradição entre homens livres e homens escravos e não me parece que esta seja a definição de uma revolução bem resolvida.

Tais fatos nos levam também a procurar definir a questão da confusão entre Americanidade e Americanismo. O Americanismo é uma forma particular de perceber a Americanidade e esta forma é normalmente a idéia da busca infinita de novas fronteiras onde e como elas se apresentem, a busca feita pelo pioneer, o pioneiro que se desvincula da família de colonos comunitários empreendedores do Norte e sai pelo vasto território híbrido em busca de novas terras, encontrando a região ibérica-ameríndia do Texas, da Califórnia, como zona de alteridade, numa constante incorporação de novas regiões. E faz este percurso no período próximo e posterior à guerra civil do século XIX . O Americanismo, desse modo, é um deslocamento de fronteiras móveis e de conquistas permanentes. É por isto que os Estados Unidos têm uma dificuldade enorme em formular um projeto americano e um lar comum americano. Porque o deslocamento dos Estados Unidos a partir de então se faz por várias regiões do Planeta, e sua solidariedade americana é pequena, confundindo-se com seu pioneirismo anglo-saxão protestante americano em busca de uma projeção extra-continental. O ideal seria que pudéssemos mostrar-lhes as vantagens de um projeto americano, que seria algo maior do que a Alca..

Os Estados Unidos estão debatendo estes problemas dentro de sua eleição geral e creio que irão debatê-lo muito mais, embora estejam mais preocupados com Irã, Iraque, Paquistão, Afeganistão, Oriente Médio, Israel, China,Rússia, Europa, e sempre com a velha Albion. de quem se desvincularam, a quem pagaram suas dívidas e por isto mesmo com quem continuaram transcontinentalmente associados para demonstrar orgulhosamente por oposição, a vitalidade de seus empreendimentos próprios..

Por último, gostaria de comentar a questão da modernidade, do imperialismo e do cosmopolitismo e os níveis de diferenciação entre um e outro.

A Modernidade trouxe a Era das Nações, e logo a forma aumentada das colônias e formação de Nações Imperiais européias. O imperialismo depende basicamente de concentração de poderes. E os poderes que formam o imperialismo atuam com poderes subsidiários, desde a antiga Roma até a Grã Bretanha. No caso dos Estados Unidos, encontram guarida no tipo de corporações que representam direitos de propriedade dos agentes civis estadunidenses. Elas atuam como pessoas morais, com responsabilidade civil, integrando sua sociedade civil. Segundo a legislação anglo-saxônica, têm os mesmos direitos civis de uma pessoa na forma de um grupo de acionistas, um grupo de cidadãos, como expressão da sociedade estadunidense. As corporações agem como tal e são vistas como representantes estadunidenses. São marcas como um símbolo da nação e a nação se vê como nação das nações, no momento em que suas corporações estão representadas orgulhosamente em outros países, levando mensagens que os estadunidenses consideram como de sua sociedade, procurando naturalmente impor estes valores.As companhias foram criadas sob liberdade de uma democracia corporativa somente se submetendo à arbitragem civil dos acionistas e do mercado.O Governo estadunidense, embora não tenha relação direta com as companhias, tem interesse nestes valores. É isto que de forma algo confusa, se chamou durante um século, como “imperialismo norte-americano”.Algumas vezes agiu como ator imperial, dividindo para reinar, em outras ocasiões, procurou combinar-se com culturas e valores locais.Porque não é um Império, no sentido convencional dos Reinos e Impérios que advieram do mundo europeu.E está em transformação interna.

Corresponde a uma cultura homogênea, uniforme, que teve seu começo nos pioneiros , como vimos, diferenciando-se do modelo do multiculturalismo.

O multiculturalismo é uma política que exprime outra realidade e se afirma no Canadá, constituindo um exemplo e um valor que o Canadá pode transmitir para o Brasil e as Américas. Não começou com a legislação em 1971 defendida por Pierre Trudeau, mas recua a l947 no pós-guerra e na ONU com a doutrina Lester Pearson, quando o Canadá percebe plenamente que seu modelo de nação já era policêntrico, amparado em vários centros, que sua fundação era binacional e multiétnica, e que tinha vantagens em respeitar vários níveis de decisão. Este modelo, que já estava contido em potencial na legislação de direitos implícitos na Constituição de 1867, foi projetado a toda a sociedade. O Canadá sempre fora uma sociedade descentralizada com províncias que se reuniram consensualmente, com vários níveis de decisão para gerar unidades consensuais, a partir de sua identidade como Nação, pressionada entre as iniciativas da Grã-Bretanha e a vizinhança dos Estados Unidos.

Como conseqüência do policentrismo e dos níveis de decisão, o Canadá também é o país em que mais se firmou o paradigma de organizações não governamentais, e mesmo empresas e empreendimentos canadenses trazem em si todas as diferenças culturais existentes na sociedade canadense, porque composições de acionistas também vêm se transformando em direção ao multiculturalismo, embora, neste último caso, mais lentamente.

Há uma congregação que se afirma, no caso canadense, e que a grande cientista social Rhoda Howard Hassman observou como construção da etnia social canadense (1999). A etnia não é uma formação biológica fixa, mas resultado de multibiografia, onde a biografia vai se construindo e se intersecionando, essencialmente dinâmica. Os imigrantes e seus filhos, de segunda geração, já se consideram canadenses e contribuem para a formação de uma identidade composta canadense. Isto é diferente do melting pot dos Estados Unidos, que é uma identidade única, derivada, e obedecendo à raiz branca, anglo saxônica protestante como orientadora principal da norma a ser seguida e obedecida.

Com isto concluo, observando juntamente com Jean-François Côté, que nossa identidade de americanos está indissolúvelmente ligada à originalidade de nossa experiência, e que tal experiência, por reunirmos as populações de todo o planeta, está nos conduzindo não apenas a uma cultura americana, mas a uma civilização americana.

Para haver governabilidade, o desafio será de organizar a Governança deste processo a qual só poderá ser realizada com o reconhecimento das diferenças em uma confederação e em um sistema de co-habitação.

Bibliografia citada

Arendt, Hannah (1988).Da Revolução.On Revolution. São Paulo: Editora Ática

Devezas, Tesaleno (2007) Portugal O Pioneiro da Globalização. Lisboa: Centro Atlântico

Howard Hassmann,Rhoda.“Canadian” as an ethnic category: implications for multiculturalism and national unity,in Canadian Public Policy,Vol. XXV,n° 4, 1999

Morse,Richard (1985).O Espelho do Próspero.Cultura e Idéias nas Américas.São Paulo.Cia. das Letras